Formação dos Itens Lexicais ou Sinais a partir de Morfemas



 
1.2.1.  Morfemas  Lexicais e Morfemas Gramaticais
    Os morfemas são unidades que podem ter funções lexicais ou gramaticais. Por exemplo, as palavras casas, construção e impossível do português são constituídas dos seguinte morfemas:
                                    casa                   -                   s (plural)
                                   constru-                                   ção (nome)
                                   possível-                                  im (negação)
                            morfema lexical                  morfema gramatical
    Em LIBRAS, nem sempre os morfemas que formam as palavras são equivalentes aos do português. Podemos, porém, ilustrar os morfemas da LIBRAS como se segue:
            SENTAR      -      movimento repetido (marca de nome)
            BONITO      -      expressão facial ~~ (marca de grau aumentativo)
            BONITO      -      expressão facial Ô  (marca de grau diminutivo)
            FALAR        -      2 mãos e movimentos longos (aspecto continuativo)
            PEGAR        -   Cl:5 Classificador para objetos redondos grandes
            PEGAR        -   Cl:F Classificador para objetos pequenos e pequenos
            PODER        -     movimentos da cabeça (negação): NÃO-PODER
           POSSÍVEL   -    movimento inverso das mãos (negação): IMPOSSÍVEL
            SABER        -    movimento da mão para fora (negação): NÃO-SABER
      morfema lexical                         morfema gramatical
    Vejamos algumas ilustrações dos sinais acima:
 


 FALAR 
FALAR SEM-PARAR
FALAR PELOS COTOVELOS
‑­
FALAR + aspecto continuativo
‑­

 
 

 PEGAR + Cl: 5


                                             PODER/POSSÍVEL     NÃO-PODER       IMPOSSÍVEL

 

                                                                     SABER                     NÃO-SABER

 
1. 2. 2. Formação de Palavras por Derivação e por Composição
    As ilustrações acima são exemplos de formação de palavras por derivação. CADEIRA é derivado de SENTAR  através do movimento repetido do primeiro; BONITINHO é derivado de BONITO através da adjunção da expressão facial ~~ , marca de grau aumentativo; BONITÃO é derivado de BONITO através da adjunção do afixo expressão facial Ô, marca de grau diminutivo; FALAR-SEM-PARAR é derivado de FALAR através da adjunção da mão esquerda  e do alongamento dos movimentos, marca de aspecto continuativo; PEGAR-BOLA é derivado de  PEGAR  através da adjunção do afixo  Cl:5,  classificador para ‑­
objetos redondos grandes; PEGAR-AGULHA é derivado de PEGAR  através da afixação do morfema gramatical Cl:F, classificador para objetos pequenos e pequenos; NÃO-PODER é derivado de  PODER  através do afixo negativo, movimentos da cabeça para os lados;  IMPOSSÍVEL é derivado de POSSÍVEL através da inversão do movimento de para baixo para os lados, afixo também negativo; NÃO-SABER e derivado de SABER através da afixação de um movimento da mão para fora, morfema negativo também.
    Através desses exemplos, pudemos observar que as primeiras palavras são formadas a partir de seus radicais aos quais se juntam afixos ou morfemas gramaticais, pelo processo de derivação. As palavras ou sinais em LIBRAS também podem ser formadas pelo processo de composição, isto é, pela adjunção de dois sinais simples em formas compostas. Por exemplo:
                    CASA + CRUZ = IGREJA
                    MULHER + PEQUENO = MENINA
                    HOMEM + PEQUENO = MENINO
    Alguns sinais como SENTAR e CADEIRA são distintos quanto à forma para as categorias verbo e nome, porém, a maioria deles não se distingue quanto às categorias verbo, nome, adjetivo e advérbio. O que vai definí-las como tal é sua função na sentença. Podemos, entretanto, ilustrar alguns casos de palavras que poderiam ser derivadas de outras como é o caso de construir e construção, em português. Por exemplo, nas sentenças abaixo, identificamos um mesmo item lexical como nome ou verbo, dependendo da sentença em que aparecem:
                 ELE NÃO LIMPAR-CHÃO-Cl:Y (com escova)
                 (=Ele não limpou com escova o chão)
                 ELE LIMPAR-CHÃO-Cl:Y (com escova) NÃO-Y
                 (=Ele não fez a limpeza do chão com a escova)
    No primeiro exemplo, o item lexical LIMPAR-CHÃO-Cl:Y tem uma função verbal. Entretanto, na segunda sentença, LIMPAR-CHÃO-Cl:Y tem uma função nominal, ou seja, é um substantivo porque vem acompanhado de um verbo leve, NÃO-Y, que devido à sua natureza de verbo sem valência não pode ser considerado um nome. Neste caso, como os verbos chamados leves sempre vêm acompanhados de um nome e como o único item capaz de preencher esta função nominal é o sinal  LIMPAR-CHÃO-Cl:Y, diremos que ele pode pertencer a ambas categorias:
                   LIMPAR-CHÃO-Cl:Y   -  verbo
                   LIMPAR-CHÃO-Cl:Y    -  nome
    O mesmo ocorre com as demais categorias: adjetivo, advérbio.
 
1. 2. 3. Aspecto Verbal
    A LIBRAS, assim como várias línguas de sinais e orais, modula o movimento dos sinais para distinguir entre os aspectos pontual, continuativo ou durativo e ‑­
iterativo. O aspecto pontual se caracteriza por se referir a uma ação ou evento ocorrido e terminado em algum ponto bem definido no passado. Em português, quando dizemos “ele falou na televisão ontem”, sabemos que a ação de falar se deu no passado, em um período de tempo determinado “ontem”. Em LIBRAS, temos um sinal FALAR para um contexto lingüístico similar. Por exemplo, ELE FALAR VOCÊ ONTEM (=ele falou com você ontem). Entretanto, temos também o sinal FALAR-SEM-PARAR que se refere a uma ação que tem uma continuidade no tempo como no exemplo ELE FALAR-SEM-PARAR AULA (=ele falou sem parar durante a aula). Vejam estes dois sinais:
 

                                                                 FALAR                      FALAR-SEM-PARAR 
                                                         (aspecto pontual)             (aspecto continuativo)
    O mesmo ocorre com o verbo OLHAR que pode sofrer alteração em um ou mais de seus parâmetros e, então, denotar aspecto durativo. Os sinais ilustrados abaixo poderiam aparecer em contextos lingüísticos como os que se seguem:
 

OLHAR (pontual)
OLHAR VOCÊ ONTEM VOCÊ NÃO-ENXERGAR (pontual)

 
‑­

OLHAR (durativo)
ELE FICAR-OLHANDO-LONGAMENTE MAR (durativo)


OLHAR (durativo)
ELA PASSAR TODOS-OLHAR-CONTINUADAMENTE (durativo)
    No segundo sinal para  ‘olhar’, a configuração de mão e o ponto de articulação mudam de G1 para 5 e dos olhos para o nariz. Com isso temos a formação de uma outra palavra com valor aspectual durativo.
    O verbo VIAJAR com valor aspectual pontual abaixo poderia ser utilizado em sentenças como PAULO VIAJAR BRASÍLIA ONTEM, enquanto que o sinal verbal com valor iterativo apareceria em sentenças do tipo PAULO VIAJAR- MUITAS-VEZES. O aspecto iterativo refere-se a ação ou evento que se dá repetidas vezes. Vejamos os sinais abaixo:
 
 

VIAJAR (pontual)                              VIAJAR (iterativo)
    Esse tipo de afixação que encontramos na LIBRAS, através da alteração do movimento, da configuração de mão e/ou do ponto de articulação do verbo que seria considerado raiz ou radical, não é encontrado em português.
 
1. 2. 4. Itens Lexicais para Tempo e Marca de Tempo
‑­
    A LIBRAS não tem em suas formas verbais a marca de tempo como o português. Como vimos, essas formas podem se modular para aspecto. Algumas delas também se flexionam para número e pessoa.
 Dessa forma, quando o verbo refere-se a um tempo passado, futuro ou presente, o que vai marcar o tempo da ação ou do evento serão itens lexicais ou sinais adverbiais como ONTEM, AMANHÃ, HOJE, SEMANA-PASSADA, SEMANA-QUE-VEM. Com isso, não há risco de ambigüidade porque sabe-se que se o que está sendo narrado iniciou-se com uma marca no passado, enquanto não aparecer outro item ou sinal para marcar outro tempo, tudo será interpretado como tendo ocorrido no passado.
    Os sinais que veiculam conceito temporal, em geral, vem seguidos de uma marca de passado, futuro ou presente da seguinte forma: Movimento para trás, para o passado; Movimento para frente, para o futuro; e Movimento no plano do corpo, para presente. Alguns desses sinais, entretanto, incorporam essa marca de tempo não requerendo, pois, uma marca isolada como é o caso dos sinais ONTEM e ANTEONTEM ilustrados a seguir:
 

ONTEM                           ANTEONTEM
    Outros sinais como ANO requerem o acompanhamento de um sinal de futuro ou de presente, mas, quando se trata de passado, ele sofre uma alteração na direção do movimento de para frente para trás e, por si só já significa ‘ano passado’. Os sinais de ANO e ANO-PASSADO podem ser observados nas ilustrações que se seguem:
 

   ANO                                           ANO-PASSADO
    É interessenta notar, que uma linha do tempo constituída a partir das coordenadas: passado (atrás)- presente (no plano do corpo)- futuro (na frente), pode ser observada também em línguas orais como o português e o inglês ‑­
como mencionado no início desse curso. Uma estruturação completamente diferente do tempo foi observada por nós na Língua de Sinais Urubu-Kaapor, língua de sinais da comunidade indígena Urubu habitante da Floresta Amazônica, onde o tempo futuro é para cima e o presente no torso do usuário dessa língua. O passado não parece ser marcado.
    Isso levou-nos a considerar que as línguas Portuguesa e LIBRAS não são tão distintas assim naquilo que não depende de restrições decorrentes da modalidade visual-espacial, veiculando,assim, uma visão de mundo muito similar, pelo menos nos aspectos semânticos até o momento estudados por nós.
As diferenças que vimos apontando ultimamente na estruturação gramatical e lexical da LIBRAS e do português parecem não apontar tanto para diferenças culturais mas são sim devidas ao fato de a primeira usar o espaço e de a segunda utilizar o meio acústico, para estruturar os significados lexicais e gramaticais.
 
1. 2. 5. Quantificação e Intensidade
    A quantificação é obtida em LIBRAS através do uso de quantificadores como MUITO, mas incorporar a quantificação, prescindindo, pois, o uso desse tipo de palavras. Assim, podemos observar nos exemplos com o verbo OLHAR acima que o olhar pontual é realizado com apenas um dedo estendido enquanto que os outros dois sinais são realizados com as mãos abertas, ou seja, com os dedos estendidos. Dessa forma, esse tipo de alteração do parâmentro Configuração de Mão iconicamente representa uma maior intensidade na ação (FICAR-OLHANDO-LONGAMENTE) ou um maior número de referentes sujeitos (TODOS-FICAR-OLHANDO). Essa mudança de configuração de mãos, aumentando-se o número de dedos estendidos para significar uma quantidade maior pode ser ilustrado pelos sinais UMA-VEZ, DUAS-VEZES, TRÊS-VEZES:
 

   UMA-VEZ                    DUAS-VEZES             TRÊS-VEZES
    Às vezes, alongando-se o movimento dos sinais e imprimindo-se a ele um rítmo mais acelerado, obtem-se uma maior intensidade ou quantidade. Isto é o que ocorre com os sinais FALAR e FALAR-SEM-PARAR, exemplificados acima e com os sinais LONGE e MUITO-LONGE ilustrados abaixo:
 
‑­

        LONGE                          MUITO-LONGE
    Como se pode observar, os mecanismos espaciais utilizados pela LIBRAS para obter significados e efeitos de sentido distinguem-se daqueles utilizados pela Língua Portuguesa. Nesta, as formas ou marcas são muito mais arbitrárias e se apresentam em forma de segmentos sequencialmente acrescentados ao item ou palavra modificada. Em LIBRAS, ocorre com muita frequência uma mudança interna, isto é, uma alteração no interior da própria palavra.
 
1. 2. 6. Classificadores
    Como algumas línguas orais e como várias línguas de sinais, a LIBRAS possui classificadores, um tipo de morfema gramatical que é afixado a um morfema lexical ou sinal para mencionar a classe a que pertence o referente desse sinal, para descrevê-lo quanto à forma e tamanho, ou para descrever a maneira como esse referente é segurado ou se comporta na ação verbal.
    Os classificadores em línguas orais como o japonês e o navajo são sufixos dos numerais e dos verbos, respectivamente.
    Em LIBRAS, como dificilmente se pode falar em prefíxo e em sufíxo porque os morfemas ou outros componentes dos sinais se juntam ao radical simultaneamente, preferimos dizer que os classificadores são afixos incorporados ao radical verbal ou nominal. Assim, nos exemplos abaixo, pode-se observar o classificador V e V, que respectivamente, referem-se à maneira como uma pessoa anda e como um animal anda.
 

  ANDAR (para pessoa)            ANDAR (para animal)
    O classificador em ANDAR (para pessoa) pode ser utilizado também com outros significados como ‘duas pessoas passeando’ ou ‘um casal de ‑­
namorados’ (no caso das pontas dos dedos estarem voltadas para cima), ‘uma pessoa em pé’ (pontas dos dedos para baixo), etc. Este classificador é representado pela configuração de mãos em V, como se segue:
 

                                                      Uma pessoa andando           Duas pessoas andando, 
                            ou em pé                         namorando ou passeando
    O classificador C pode representar qualquer tipo de objeto cilíndrico profundo como um copo, uma caixa, uma urna como no exemplo abaixo do sinal VOTAR:
 

   VOTAR                                Classificador C
    Outros classificadores podem ser os morfemas representados pelas configurações de mão B e Y como se segue:
 

Classificador B              Classificador Y 
    O classificador B refere-se e descreve superfícies planas como mesa, parede, chão, etc. enquanto que o classificador Y refere-se e descreve objetos multiformes ou com formas irregulares, porém não planos nem finos. O classificador G1 é que é utilizado para descrever objetos finos e longos.
 Inúmeros são os classificadores em LIBRAS, sua natureza semântica e sua função. Entretanto, apenas mencionamos alguns a título de ilustração.
 
1. 2. 7. Incorporação de Argumento
‑­
    As línguas orais e de sinais apresentam vários casos de incorporação de argumento ou complemento. Por exemplo, em português, podemos citar o verbo engavetar que, em uma análise sintático-semântica, poderia ser decomposto em um verbo básico do tipo colocar e em um complemento desse verbo que seria um locativo na gaveta. Assim, podemos dizer “eu coloquei os livros na gaveta” ou “eu engavetei os livros”. O constituinte na gaveta, um locativo, argumento ou complemento de colocar, foi incorporado a este verbo e em decorrência disso temos a outra forma verbal engavetar que prescinde do locativo como complemento porque já carrega esta informação em seu próprio item lexical. Temos, pois, uma forma lexical derivada de outra mais básica, porém, desta vez não pelo processo de derivação por afixação nem por composição, como discutido acima, mas sim pelo que se chama de incorporação de argumento.
    Em LIBRAS, o processo de incorporação de argumento é muito frequente e visível devido às características espaciais e icônicas dos sinais. Os três verbos abaixo ilustram esse tipo de incorporação. O primeiro, o verbo BEBER/TOMAR pode ser usado sem incorporação em sentenças do tipo:
                       BEBER CERVEJA (= eu bebi cerveja)
    Porém, se o objeto direto do verbo for, por exemplo, café ou chá, o verbo incorporará este argumento e teremos formas verbais diferentes, como demonstram as ilustrações a seguir:
 
 

                                   BEBER, TOMAR               BEBER-CAFÉ        CHÁ (segurar x-tipo de objeto)
                                                                                        em LIBRAS (CI: B A e CI: F) 
    Outro exemplo de incorporação pode ser ilustrado pelo verbo ALUGAR/PAGAR-MENSALMENTE em que o verbo PAGAR que normalmente é articulado sobre a mão de apoio em B passa a ser articulado na mão de apoio (mão esquerda) em G1, a mesma do sinal MÊS. Assim, uma parte deste sinal incorpora-se ao sinal PAGAR, substituindo-a. Vejamos o sinal:
 
‑­

ALUGAR/PAGAR-MENSALMENTE
    O mesmo processo de incorporação pode ser também observado no sinal que deriva do sinal verbal COMER, ao qual se incorpora o objeto direto MAÇÃ:
 

COMER                         COMER-MAÇÃ


 


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